Ele tem ciúmes de mim?

Recentemente fui à Igreja Batista da minha cidade e ouvi o grupo de louvor trocar a expressão "ciúmes" por "cuidado", na música Me ama, do Diante do Trono. Por mais que essa tenha sido uma atitude nobre de zelo pela coerência bíblica nos cânticos, dei-me a liberdade de discordar dessa troca.

É bíblico?

O ciúme de Deus é bíblico? Sim. Vemos essa expressão (no hebraico qin`ah [1] ) no livro de Ezequiel (8.3; 16.38,42). A tradução NVI ainda traduz esse termo hebraico como ciúmes em algumas passagens que a tradução ARA e a ARC põem como "zelo" (Sl 78.58; Ez 23.25; Zc 8.2). E em diversas outras passagens, ambas as traduções usam qin`ah como zelo (Dt 29.20; Sl 79.5; Is 9.7, 37.32; Ez 36.5, 38.19; Sf 1.18). Isso sem falar nas variantes do termo (zeloso ou ciumento, enciumado). Além disso, essa mesma palavra hebraica é usada para se referir ao ciúme dos irmãos de José (Gn 37.11) e até mesmo ao ciúme entre cônjuges (Nm 5.11-31).

Trocando em miúdos, a Bíblia mostra que Deus tem ciúmes, sim, mesmo que a nossa tradução tenha por vezes preferido outro termo. Além disso, não há distinção entre o ciúmes de Deus e o humano no Antigo Testamento.

Ofensivo?

Soa sacrilégio, não é? É, eu sei que pode soar. Em outras ocasiões, não só aqui, a Bíblia parece usar termos fortes. Entretanto, o cristão não pode se basear na estética de um termo para julgar o caráter de Deus. J. I. Packer diz "não estamos criando uma ideia de Deus a partir de nossa imaginação, estamos, ao contrário, procurando ouvir as palavras das Sagradas Escrituras, em que Deus fala a verdade a respeito de si mesmo" [2]. Não se trata de escolher o politicamente correto, e sim o biblicamente correto.

Intraduzível

A teologia traz o conceito de antropomorfismo [3] para esclarecer que Deus se apresenta para nós com traços e sentimentos humanos (braços, mãos, dor, arrependimento). Parece que o sentimento de ciúmes se enquadra nesse conceito. Ou seja, a ideia de ciúmes é a mais próxima que temos para entender como Deus reage em certas situações. Não se trata de um ciúme baseado em orgulho ou fraqueza, ou talvez um ciúme pecaminoso que é citado em Gálatas 5.20. É um ciúme santo, mais elevado e nobre que o nosso.

Fogo consumidor

Se você leu as referências citadas acima, percebeu que em todas, a ideia de ciúme está ligada ao "flerte" do povo de Deus com falsos deuses. O termo "ira" é presente em muitas dessas passagens, e em algumas delas a analogia com fogo aparece. O que todos esses versículos evidenciam é que o ciúmes de Deus é resultado da nossa idolatria. Nosso Deus não é apático. Não é Deus alheio a nós, distante. Ele não tolera a traição. Por isso, ao apresentar os dez mandamentos, há a advertência "sou Deus zeloso" (Ex 20.5).

O seu ciúme é fruto de Seu amor para conosco e de Sua santidade que não admite a transgressão. E devemos dar glórias a Ele por isso em vez de tentarmos diminuir ou relativizar essa noção. É por isso que Paulo vem dizer em 1 Coríntios 10.22: "Porventura provocaremos o ciúme do Senhor? Somos mais fortes do que ele?" Vamos mesmo achar que podemos adulterar com outros deuses e passar impunes das mãos do Senhor?

Toda vez que cometemos o pecado da idolatria, estamos nos prostituindo. Manchamos o leito da santa e pura aliança que nosso Noivo fez conosco. Não sejamos adúlteros e infiéis. Oremos para que o ciúme do Senhor nos persevere em fidelidade e santidade. Em castidade de coração.

Notas

[1] Dicionário bíblico <https://dosenhor.com/?strong=h7068>
[2] PACKER J. I. O conhecimento de Deus. Editora Cultura Cristã, 1973.
[3] Um bom texto sobre antropomorfismo <http://www.monergismo.com/textos/presciencia/antropomorfismo.htm>

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